Era quase dia sim dia não. De manhã, era tempo de ir para a escola primária bem cedo, mas logo que esta acabava era almoçar, fazer os trabalhos de casa que a professora mandava, em ritmo acelerado, mas bem, e o meu pai congratulava-me com uma ida ao parque central da Amadora, onde os dois jogávamos à bola no ringue desse jardim durante horas. Ainda hoje quando lá passo, recordo essas memórias que permanecem como as mais vivas que tenho da minha infância.
Lembro-me também de quando o meu pai chegou um dia a casa e disse a todos que tinha ido inscrever-me nas escolinhas de recreação do Estrela da Amadora, semelhante ás escolas que Benfica e Sporting detém um pouco por todo o país, de forma a entreter crianças e a angariar uma boa quantia de dinheiro. Foi o meu delírio, quanto mais não fosse pelo facto de ter sido algo que ele tinha feito sem eu nunca lhe ter pedido. Em abono da verdade, com essa idade eu pouco ou nada sabia da existência dessas coisas. Depois de alguns meses a treinar com o mister Luís, a quem ainda hoje falo quando o encontro na rua e que foi o meu primeiro treinador, estava feita a passagem para as escolas de competição, um nível mais sério que incluía a participação em campeonatos. Foi aí então a entrada para um "mundo" ao qual eu me sentia muito bem em pertencer.
No entanto, no futebol nem tudo é belo. Em qualquer que seja a idade, há sempre inúmeros factores que influenciam o futebol. E desde bem cedo se sentiu isso no Estrela. O treinador era uma boa pessoa, mas parcial no que se tratava de escolher aqueles que jogavam e não jogavam. Os paizinhos de muitos jogadores ofereciam jantares e outras prendas ao treinador, e o treinador correspondia ás expectativas desses mesmos paizinhos. Isto fez com que eu não jogasse nem evoluísse da forma que se pedia dada a minha idade.
Foi então, com um sentimento de injustiça, que me mudei do Estrela para o Futebol Benfica, conhecido vulgarmente no futebol por Fó-Fó. Sair do Estrela e ingressar no Futebol Benfica era como que um retrocesso, dadas as condiçóes de treino, e as dificuldades monetárias de um clube que albergava futebol sénior e juvenil, em garantir deslocações, equipamentos. Viria, no entanto, a enganar-me e para bem de mim. Mudar-me para o Fó-Fó foi a melhor decisão que podia ter tomado. Na altura já infantil (escalão acima das escolas), os cerca de 7 (!) treinadores que eu tive na única época em que lá joguei, depositaram todos confiança em mim e fizeram com que eu recuperasse o tempo perdido no Estrela. Nessa época, eu era o único dos mais novos a jogar com os mais velhos e joguei a época toda sem ser substituído uma única vez e chamado uma vez à selecção distrital de Lisboa na idade acima da minha.
Foi no fim dessa época, que mais uma vez o meu pai, um autêntico "empresário" e sem possuir habilitações para tal, quis ir ainda mais longe do que eu imaginava poder chegar. Também me recordo do dia em que ele me disse que acabava de chegar do Benfica, não do Futebol Benfica, mas sim do Sport Lisboa e Benfica e que tinha marcado um treino de captação que todos os anos acontecem no clube da Luz. A ansiedade invadiu-me literalmente. Imaginem um concurso do género dos Ídolos ou Operação Truinfo, mas em futebol. Eram centenas de adolescentes dividos por uma espécie de eliminatórias que ocorriam em dias específicos. Numa semana, eram uns 70 à 2ª, outros 70 na 4ª, e mais 70 na 6ª. O objectivo era o mesmo: jogar um dia no Benfica.
Foi aí que conheci o melhor treinador de todos os que tive, de seu nome António Bastos Lopes, uma velha glória do clube e foi por "mão" dele que entrei no Benfica. Eu, e mais dois.
Jogar no Benfica era um orgulho, o expoente máximo que uma criança, na altura já adolescente e amante de futebol, poderia desejar para si. E a isso, para sempre vou agradecer ao meu pai, por ter acreditado mais em mim do que eu próprio.
Iniciados: Vitória por 7-1 contra o Sporting. Foram 4 anos absolutamente fantásticos os que se seguiram, repletos de boas experiências. Agora eu era um melhor jogador que jogava com os melhores da minha idade, e era treinado pelo melhor treinador. Torneios por todo o país, inúmeras cidades conhecidas através do Benfica, jogos contra espanhóis, franceses, italianos, inclusivamente duas viagens feitas para torneios aos Açores e Madeira. Dizia o meu treinador que o "difícil não era ir jogar para o Benfica, difícil era estar lá" e estava certo no que dizia. Era ter escola de dia muitas vezes desde as 8h30m até as 18h e depois comer rápido algo para enganar o estômago e ir a correr para os treinos que eram todos os dias. Para além disso, tínhamos avaliações de directores ligados ao futebol juvenil e que avaliavam o nosso rendimento. Era exigente, mas era o preço justo a pagar de quem estava entre os melhores.
Mas a vida é feita também de interesses e então num grande clube, ainda mais salientes se tornaram. Ter pais com posses, ir ás selecções jovens ou ser o preferido do treinador faz a "cama" na qual um jogador se pode deitar. Ao fim do 4º ano como benfiquista, e entretanto treinado por um professor de Ed. Física que pocuo ou nada percebia de futebol, a avaliação feita por parte dos dirigentes e treinadores dizia friamente perante toda a equipa as dispensas dessa época. E o meu nome estava lá. Foi sem dúvida o dia em que chorei mais na minha vida, pela sentimento de injustiça e de impotência e pela profunda tristeza que se abatia sobre mim. Podia não ser o melhor, mas por certo era um dos mais dedicados ao trabalho, porque sei que cunhas eu não tinha.
Foi então que me mudei para o Belenenses, á procura de demonstrar que, apesar da saída, do Benfica, nada estava acabado. Mas o azar bateu à porta, também fruto da ignorância do treinador, que comigo "a frio" mandou-me rematar em força e chutar à baliza. Resultado: uma rotura de 3 cms que me deixou parado cerca de 5 meses e a epóca praticamente perdida. Aliada a esta frustração, estava também a constatação do esforço e sacrifício que os meus pais tinham feito ao longo de quase 10 anos de futebol que eu levei, o que me levou a deixar de jogar.
Hoje escrevo uma nova página desta história. Serve este post para marcar o início do regresso ao futebol de competição, está na hora de começar a correr muito intensivamente quase todos os dias, para que possa integrar-me num clube "qualquer" e poder fazer aquilo que mais gosto na vida e do qual tenho muitas saudades e me deixa por vezes triste e incompleto. Quero voltar a sentir aquele público de bairro a puxar pela sua equipa, demonstrar toda a força e garra que tenho dentro de mim. Ao futebol devo muito, principalmente a minha educação como pessoa. Foram verdadeiras lições de vida, todos aqueles dias em que vinha na 143 às 23 horas com a minha mãe, aqueles jogos no campo do Tenente Valdez em que o público cuspia-nos e aqueles inúmeros campos em que a jovens de 13/14 anos eram endereçados palavrões de toda a natureza. São também muitos os amigos que guardo desses tempos, inimigos... não muitos.
Um dia deixei o futebol para estar mais perto de outras pessoas que me souberam apoiar. Pois agora a essas mesmas pessoas peço ajuda para pagar aquilo que fiquei a dever a este mundo fantástico.