terça-feira, 20 de outubro de 2009

Ainda sobre o último post...

Para concluir aquilo que quis transmitir no último post, aqui fica este belo texto do meu "vizinho" Joaquim Franco, jornalista da Sic:

Saramago não consegue evitar o conflito. Na descrença em Deus, entre um ateísmo crítico e a obsessão ateísta, constrói a narrativa da (des)crença no homem, com vícios e virtudes, más e boas condutas. Marcado pelo estigma, alicerçado na mais básica das reflexões filosóficas… O homem tem, em princípio, uma natureza má.

Dizer que a "Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana", é um passo de enorme responsabilidade.

A Bíblia não é um documento de hoje, embora interpele o hoje, que foi ontem e será amanhã. Nem os autores são candidatos a qualquer prémio literário. Nasceu na tradição oral, onde a noção de realidade se dilui.

É um conjunto de livros marcados pelo tempo, por cada tempo, com múltiplos géneros literários, escritos por homens, nos seus contextos e circunstâncias, entre mitos, com a pretensão de justificar o injustificável, provar o improvável, legitimar poderes e profecias. A fé dá apenas um enquadramento.

Não é só um documento religioso. Da ciência à filosofia, é um documento da humanidade. Não sendo um livro de história, é um repositório de histórias e dilemas, objecto de estudo. Relata experiências datadas, não necessariamente factos, que moldaram a(s) sociedade(s).

A Bíblia é um livro de "maus costumes", mas também de bons costumes. Um "catálogo de crueldade", mas também de sensibilidade e generosidade. Céptica, mostra o "pior da natureza humana". Utópica, revela confiança para lá da lógica humana e capacidade de perdão sem limites.

A Bíblia pode ser lida como um tratado de violência, mas também como um tratado de não-violência. Tem histórias de guerra e de paz. Adão e Eva. De traições e fidelidades. Caim e Abel. Dramas e alegrias. Paixões e desilusões. Sansão e Dalila. Alentos e desalentos, da metáfora erótica de Cântico dos Cânticos ao suplício de Job. Ameaças e bem aventuranças. David e Golias. Desespero e esperança, do Egipto à "Terra Prometida". O ferro nas mãos e o fogo nas palavras. Jesus e Barrabás. Intolerância e confiança. Da Sabedoria a Eclesiastes, "tudo tem o seu tempo" e há um tempo para tudo. Para a Vida e para a Morte.

Reduzir a Bíblia a meia dúzia de frases marcadas pelo preconceito religioso é uma desonestidade. Outros pensadores – que não chegam aos calcanhares do Nobel português –, noutros cenários religiosos, já fizeram o mesmo exercício de liberdade. Dizer que a Bíblia "é um manual de maus costumes" é um mau costume, mas uma boa estratégia de vendas.

NOTA: Entre a procura da fé e a exegese pura, sugiro a leitura de “O que é a Bíblia?”, de Carreira das Neves, ou “Roteiro de leitura da Bíblia”, de Fernando Ventura. Para desmontar algumas teias…

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